“ÁGUAS DE MARÇO”
Rui Leitão
O mundo inteiro conhece a canção “Águas de Março”, considerada um dos grandes clássicos da Música Popular Brasileira, composta por Antônio Carlos Jobim, em 1972, quando estava refugiado no seu sítio Poço Fundo, na região serrana do Rio de Janeiro. Os amigos de um tradicional bar carioca foram os primeiros privilegiados a ouvir a música, cantada por Tom Jobim ao violão. O tablóide “Pasquim”, acatando uma ideia do músico Sérgio Ricardo, lançou uma série “Discos de Bolso”, compactos simples que apresentavam, no lado A, um artista consagrado e, no lado B, um iniciante. O primeiro foi exatamente “Águas de Março” e do outro lado a música “Agnus Sei”, dos estreantes João Bosco e Aldir Blanc. A versão que se fez enorme sucesso foi a que gravou com Elis Regina, no CD “Elis & Tom”, em 1974. Em 2001 foi eleita a melhor música brasileira de todos os tempos pelo jornal Folha de São Paulo, em pesquisa realizada com jornalistas, músicos e outros artistas.
Segundo o próprio compositor relata, “Águas de Março” começou a ser composta num momento em que estava vivendo uma depressão, agravada pela influência do consumo alcoólico e da perseguição política da ditadura militar. Disse o autor, em depoimento incluído em “Antonio Carlos Jobim – Uma Biografia”, de Sérgio Cabral: “Eu estava com Teresa (sua mulher) lá no sítio, vendo uma aguinha passar pelo regato, e a coisa começou a brotar”. Coincidiu com o trabalho de finalização do álbum “Matita Perê”, que viria a ser lançado no ano seguinte. As primeiras notas da melodia foram tocadas no violão e a letra rabiscada em um papel de embrulhar pão.
Outra revelação importante do compositor foi a de que teria se inspirado, na natureza do local em que estava recolhido, com o final do verão e a chegada do tempo chuvoso, bem como nas leituras de autores da literatura brasileira como Carlos Drumond de Andrade, Mário Palmério, Guimarães Rosa e, principalmente, no poema O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac.
Nas estrofes da belíssima letra percebe-se o verbo “ser” conjugado na terceira pessoa do singular. E aproveita o fato de que estava acompanhando a construção da casa principal do sítio, pois, na oportunidade, hospedava-se com a esposa numa casinha de pau a pique, por eles chamada de “Barraco número 2”, para citar nos versos elementos utilizados na obra, tais como: pau, pedra, madeira, tijolo, prego, vidro, etc. A água simbolizando a renovação da vida. A canção fez com que ele superasse a depressão que estava vivenciando.
Explora as dualidades nos contrastes do novo e do velho, do inconcluso e do concluso, do fim do caminho e a luz da manhã, do fundo do poço e a promessa de vida no coração. Só um gênio seria capaz de produzir algo com tanta riqueza poética, ressaltando a importância dos fenômenos da natureza, que nos levam a reflexões sobre o ato de viver a partir das metáforas nele encontradas. No seu talento musical conseguia colocar ritmos e sonoridades às palavras, o que fez com que a canção se evidenciasse como uma joia de inestimável valor da nossa MPB, antológica, uma obra de arte, resistindo ao tempo e sendo cantada pelas gerações que se sucedem. É, sem qualquer dúvida, um marco da história da música brasileira.